Com eficácia comprovada em diversos tratamentos, a diminuição do preconceito com relação à cannabis traz novas possibilidades na saúde
Por Correio Braziliense
Em uma volta ao passado, é possível vislumbrar muito do presente e do futuro medicinal da cannabis. Enquanto associações, famílias e cientistas lutam pelo direito de explorar e se beneficiar dos já conhecidos efeitos positivos da planta na saúde, o preconceito e a desinformação ainda atrasam não só o uso como os estudos sobre sua função no organismo.
Mas não foi sempre assim. O uso medicinal dos ativos derivados da cannabis não é novidade. Os primeiros registros de interação entre o ser humano e a planta datam da Idade da Pedra. Cordas feitas pela espécie aparecem em peças chinesas de cerca de 10 mil anos e, segundo estudos arqueológicos, seu plantio se iniciou nas primeiras lavouras.
Os dados históricos divulgados pelo canal Cannabis & Saúde demonstram ainda que o primeiro uso medicinal da cannabis aconteceu por volta de 2.700 antes de Cristo. No livro chinês Pen Tsao, a planta é recomendada contra dores articulares, gota e malária. Desde então, são diversos os registros históricos nos quais a cannabis, assim como uma série de outros ativos botânicos, aparece como um fármaco.
A médica Maria Teresa Jacob, pós-graduanda em endocanabinologia, cannabis e cannabinoieds, membro da da Society of Cannabis Clinicians (SCC) e da International Association for Canabinoid Medicines (IACM), acrescenta que os registros milenares apontam para o uso da cannabis como tratamento de convulsões, enxaquecas e alterações do aparelho reprodutor feminino, como cólicas.
O abandono e o ressurgimento de um remédio
No início do século 20, com a popularização de medicamentos mais modernos e com a dificuldade em prever os efeitos da cannabis, seu uso medicinal diminuiu consideravelmente, ao mesmo tempo em que o uso recreativo por grupos marginalizados se popularizava.
Em 1830, a maconha se tornou ilegal no Brasil. Nos Estados Unidos, o mesmo aconteceu em 1910, e todos os benefícios relacionados ao uso medicinal da cannabis ficaram escondidos atrás da criminalização imputada à planta, que deixou de ser considerada um medicamento.
Foi somente em 1963 que a cannabis voltou a despertar interesse do ponto de vista médico. O químico búlgaro-israelense Raphael Mechoulam isolou, pela primeira vez, dois princípios ativos da planta, o canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabinol (THC). A pesquisa dos efeitos dessa substância no organismo permitiu o descobrimento do sistema endocanabinoide.
O médico Renato Anghinah, CMO (chief marketing officer) da Hempmed, primeira importadora de cannabis medicinal do Brasil, ensina que o sistema endocanabinóide é formado por uma série de receptores, por moléculas endógenas, chamadas endocanabinóides, e por enzimas que funcionam como sinais entre as células e os processos corporais.
Os receptores de neurotransmissores estão espalhados por todo o corpo e as moléculas endógenas se ligam a eles, criando efeitos biológicos que têm como objetivo principal regular e manter o equilíbrio dos outros sistemas do organismo, sendo responsável pelo controle da saúde e do bem-estar.
Diferentemente do sistema nervoso central e do sistema nervoso autônomo, ele funciona sob demanda, liberando substâncias quando é provocado. “Quando há uma desregulação no sistema nervoso, o endocanabinóide tenta corrigir esses impulsos. Se o cérebro está muito excitado, por exemplo, essas substâncias inibitórias e relaxantes vão acalmá-lo”, explica Renato.
E é nesse sistema que a cannabis atua, uma vez que seus ativos imitam as moléculas endocanabinoides do nosso organismo. Quando há um desequilíbrio na saúde do corpo e a produção natural de moléculas não é o suficiente para resolver, ou quando, por algum motivo, determinada pessoa não consegue produzir endocanabinoides adequadamente, o uso de medicamentos à base de ativos da cannabis pode ser a solução.
Marcelo Valadares, médico neurocirurgião da disciplina de neurocirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e do Hospital Albert Einstein, esclarece que a rede cerebral envolvida pelos receptores está ligada ao funcionamento de diversos circuitos, entre eles o da percepção da dor e, assim, especula-se que o canabidiol e outros ativos da cannabis atuam nos processos inflamatórios do sistema nervoso e na modulação das via neurais.
“Sabemos que várias doenças e condições clínicas estão ligadas a inflamações no sistema nervoso e a modulação delas pode reduzir significativamente sintomas e consequências. Estudos também consideram os efeitos nas dores crônicas e nas doenças degenerativas”, acrescenta Marcelo.
A região com maior concentração de receptores e neurotransmissores é o sistema nervoso central, de forma que grande parte das doenças e condições nas quais o uso dos ativos da cannabis é indicado são as de origem neurológica.
“Podemos dormir”
É nesse quadro e em uma das condições mais comumente tratadas com a cannabis que se encontra a família Schumann. Gabriela Palhares Glitz Ferreira Schumann, 19 anos, tem uma epilepsia de difícil controle associada ao transtorno do espectro autista (TEA).
O funcionário público Adalberto Alfredo Schumann, 49 anos, e a educadora Keile Simone Ferreira Schumann, 51, introduziram o CBD no tratamento de Gabriela em agosto de 2018 e tiveram dificuldade de acreditar no que viam.
Gabriela tinha cerca de 30 crises por dia e, quando tomou a primeira dose, passou 10 dias sem ter nenhuma. “Ficamos receosos no início, por introduzir mais um medicamento, não sabíamos se ia funcionar. Mas desde que ela começou a tomar o CBD, teve cerca de 300 crises a menos na vida”, comemora Adalberto.
Adalberto e Keile, que ficavam 24 horas por dia se dividindo na vigília da filha, puderam, depois de anos, ter uma noite de sono completa ao mesmo tempo. E o mesmo vale para Gabriela, que nunca tinha passado mais de duas horas sem uma crise.
Atualmente, ela tem crises esporádicas, mas a intensidade mais alta equivale às mais leves que apresentava antes do uso do CBD. Gabriela se tornou mais sociável, conversa com pessoas além da família, come melhor e ganhou peso.
“A mudança foi significativa, lamento muito não termos começado antes. Ela teve um desenvolvimento físico e cognitivo que nunca tínhamos visto, e eu imagino como seria diferente se ela tivesse esse tratamento desde pequena. Por isso, é tão importante a divulgação desse conhecimento”, defende Adalberto.
Parte de uma ONG, Adalberto e Keile lutam para que cada vez mais famílias tenham acesso ao tratamento que pode mudar a vida de muitas pessoas. Os altos custos e o processo burocrático para importação e mesmo compra local dos ativos da cannabis impedem que muitas famílias consigam tratamento.
“O custo familiar é muito alto e é um impeditivo para que a maioria da população tenha acesso. Uma seringa do remédio da minha filha custa um salário mínimo, e o processo para conseguir pelo Sistema Único de Saúde também envolve custos e dificuldades”, lamenta.
Pioneirismo que salva vidas
“Se não fosse o tratamento com o canabidiol, acredito piamente que minha filha não estaria mais no planeta, ela teria ido para o céu”, declara Norberto Fischer, 53 anos. O bancário e professor universitário e sua esposa, a paisagista Katiele Fischer, 40, fizeram história como a primeira família a conseguir autorização para importar canabidiol no Brasil, em 2014.
Anny Fischer sofre de um problema genético raro, a síndrome CDKL5, que causa um tipo de epilepsia grave. Antes de iniciar o tratamento com o canabidiol, há oito anos, tinha cerca de 60 convulsões por semana. As crises diminuíram para 20 por semana, tornaram-se esporádicas e, eventualmente, desapareceram.
Depois de ganhar as páginas dos jornais com sua história, Anny completou 13 anos e, segundo Norberto, já não é a bebê da família. Em entrevistas anteriores ao Correio, Katiele e Norberto comemoravam cada pequena vitória da filha, desde gargalhadas espontâneas até as birras para escovar os dentes. Hoje, sonham que cada vez mais famílias possam desfrutar da mesma qualidade de vida que eles.
Depois de passar por um turbilhão, os Fischers se voltaram um pouco mais para seu universo particular, aproveitando, inclusive para vivenciar, em totalidade, todas as novas interações e momentos com Anny, proporcionados pelo tratamento com o CBD. Cada olhar, sorriso e sentimento expressado pela filha são lembretes diários da vitória da família.
“É até difícil falar, sentimos tudo muito de perto. É como se a vida da Anny se esvaísse entre nossos dedos e, mesmo existindo um medicamento, não podíamos fazer nada. Não desejamos que ninguém mais passe por isso. Saber que plantamos uma sementinha que pode contribuir com a alegria e o alívio de tantas famílias é um sentimento muito bom”, comemora Norberto.
No entanto, Norberto acredita que ainda há muito o que avançar. A autorização para o plantio, seja por empresas privadas, seja pelo próprio governo, por meio da Embrapa, por exemplo, diminuiria consideravelmente os custos, permitindo que famílias de baixa renda tenham acesso aos medicamentos sem a necessidade de procurar a Justiça.
Legislação
Atualmente, a lei brasileira permite que empresas brasileiras produzam os medicamentos, porém os insumos precisam ser importados, uma vez que o plantio da cannabis não é permitido. Pessoas com receita médica para medicamentos à base da cannabis também podem solicitar autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importar os remédios.
No último dia 4, a Anvisa publicou autorização sanitária de mais dois produtos à base de cannabis. A novidade deles, em relação aos outros cinco já aprovados, é que são compostos por extratos vegetais, ou seja, possuem em sua composição um conjunto de substâncias extraídas da planta, ao contrário dos demais, que são compostos por canabidiol isolado.
O médico Renato Anghinah ressalta a importância dessa nova autorização. Em um momento inicial, o foco ficou somente em cima do CBD, o que até facilitou a diminuição do tabu e do preconceito em cima dos medicamentos. O CBD isolado não tem, por exemplo, nenhum tipo de efeito semelhante ao da maconha, uma vez que o que causa efeitos psicotrópicos são altas doses de tetrahidrocanabinol (THC).
Porém, rompidas as barreiras iniciais, é importante ampliar a discussão. Existem condições de saúde nas quais somente o CBD isolado não é o tratamento mais adequado ou eficaz. Pacientes com dores crônicas ou intensas se beneficiam muito mais de compostos que também contêm THC.
Na vida e na ciência
A história do pesquisador e neurocientista Renato Malcher Lopes com a cannabis começou no lado profissional, mas, hoje, tem reflexos na vida pessoal. O médico fez um doutorado, nos Estados Unidos, em que estudou o sistema endocanabinóide e os outros sistemas do organismo nos quais ele atua. “Comecei a me interessar pelo uso medicinal da cannabis antes de ter ideia do quanto seria importante na minha vida”, conta.
Renato finalizou o doutorado e, em 2006, escreveu um livro em parceria com um amigo sobre o abuso e o uso medicinal da cannabis. “Fiquei chocado e surpreso com o volume e a antiguidade do conhecimento que já existia sobre o uso medicinal. E, do ponto de vista médico, não existia nada que justificasse essa proibição medicamentosa.”
O processo de Renato também passou pela decepção em um pós-doutorado na Suíça, quando ele queria explorar os efeitos da cannabis em estudos com ratos, pesquisando a relação de defeitos no sistema endocanabinoide e sintomas do transtorno do espectro autista (TEA), mas não teve o apoio da chefia do projeto.
Na mesma época, o filho de Renato foi diagnosticado com autismo e ver a possibilidade de melhorias de vida não só para ele, mas para tantas outras pessoas que poderiam se beneficiar dos ativos da cannabis ser desperdiçado teve um grande impacto na vida do cientista.
“Eu estava em um laboratório cheio de possibilidades na Suíça, pesquisando, lendo a respeito, vendo possíveis soluções que não eram exploradas. Entrei em uma crise existencial. Voltei para o Brasil, surgiu a chance de escrever esse livro e me lancei na luta pela cannabis medicinal”, lembra.
Em 2013, após outros estudos, veio a confirmação das suspeitas de Renato e a relação entre o TEA e defeitos no sistema endocanabinóoide foi comprovada. Em 2014, Renato escreveu um artigo defendendo o uso do CBD, com ou sem o THC, e viu as famílias e associações sendo os principais agentes de mudança.
Cauê Malcher começou a usar o CBD aos 12 anos. Depois de dois anos e meio vendo benefícios do tratamento, mas sabendo que o acréscimo do THC poderia aumentar a qualidade de vida do filho, Renato introduziu o segundo componente. Hoje, o médico vê o filho de 16 anos muito mais tranquilo, com menos crises e capaz de fazer conexões emocionais e de se comunicar por escrito.
“Eu vi um efeito mais contundente. Para as particularidades do meu filho, o CBD e o THC combinados trazem mais ganhos. É importante ressaltar que não é uma cura, mas é um ganho estável que atua na reconfiguração do cérebro”, explica.
Na prática
O médico Renato Anghinah divide os usos da cannabis entre os bem estabelecidos e comprovados, os que estão em fases de estudo avançado e também são indicados por médicos e os que podem ter benefícios, mas ainda não há pesquisa suficiente para afirmar ou não a eficácia.
Entre os de eficácia totalmente comprovada cientificamente, estão o uso em epilepsias refratárias, em crianças com síndromes genéticas e epilepsias graves, em pessoas com o transtorno do espectro autista (TEA), com distúrbios ansiosos e para a espasticidade muscular.
Em caso de pacientes com esclerose múltipla (EM), a cannabis trata um dos sintomas. Pacientes com espasticidade após acidente vascular cerebral (AVC) ou após traumas raquimedulares e com dores neuropáticas também se beneficiam dos efeitos do CBD e do THC.
Estudos em curso e já em etapas avançadas demonstram a eficácia da planta em outros tipos de dores crônicas, em dores pós e pré-cirúrgicas, distúrbios do sono e dores de cabeça de difícil tratamento, incluindo as enxaquecas. “Isso não significa que funciona para todos os casos e pacientes, mas os estudos são promissores”, esclarece Renato.
O uso de derivados da cannabis também vem sendo amplamente discutido no tratamento de sintomas do Alzheimer e do Parkinson. Não há evidência de regressão das doenças ou de impedimento da progressão, mas quadros de agitação diminuem consideravelmente, permitindo uma melhoria na qualidade de vida dos pacientes e das famílias. O benefício motor em pacientes com Parkinson também é comprovado.
E, por fim, existem estudos em fases iniciais que demonstram os benefícios da cannabis na medicina paliativa, como conforto para os pacientes. Outras pesquisas também exploram as possibilidades da espécie no tratamento de doenças gastrointestinais e metabólicas, assim como na endometriose.
Novos estudos
A médica Maria Teresa Jacob, pós-graduanda em endocanabinologia, cannabis e cannabinoieds, menciona ainda o uso da cannabis para alívio dos efeitos adversos de tratamentos pesados, como a quimioterapia. Entre eles, náuseas, vômitos, mal-estar e até neuropatia periférica, quando os nervos perdem uma camada protetora e ficam mais sensíveis à dor. A médica menciona também os efeitos no humor, seja no tratamento de ansiedade e depressões, seja em síndromes de estresse pós-traumático.
Atualmente, um dos focos de Maria Teresa são os efeitos da cannabis em doenças do aparelho reprodutor feminino, como cólicas, endometriose e adenomiose.
Estudos preliminares mostram que os ativos da cannabis podem diminuir a migração de tecidos do útero para outros locais, além de auxiliar na diminuição dos tecidos já formados. As pesquisas se mostram promissoras e trazem uma alternativa de tratamento para a endometriose, além do alívio das fortes dores trazidas pela doença.
Outros estudos iniciais apontam ainda para efeitos antitumorais e anti-inflamatórios em doenças como artrites. Pesquisadores também avaliam o potencial da cannabis em tratamentos contra vícios. “São pesquisas muito importantes, pois trazem uma possibilidade para muitas doenças que não têm tratamentos eficazes atualmente. É muito importante insistir na desmistificação e acabar com esse preconceito e tabu”, reforça.
PUBLICAÇÃO ORIGINAL: https://www.correiobraziliense.com.br/revista-do-correio/2021/11/4963731-os-avancos-cientificos-do-uso-da-cannabis-no-tratamento-de-doencas.html